23/11/2021
Por Ricardo Alexandre da Silva (*)

Há alguns anos, se você perguntasse a um brasileiro sobre o Supremo Tribunal Federal, poucos teriam o que dizer. Provavelmente, ninguém se lembraria do nome de algum juiz da Suprema Corte. Hoje, tornou-se clichê mencionar que conhecemos melhor a composição do Supremo que a escalação da seleção brasileira de futebol. Desde o “Mensalão”, ação penal que escancarou a corrupção no governo Lula, o STF se tornou mais cada vez mais influente, ocupando um papel cada vez maior no cenário institucional.
Quando o Congresso Nacional deixa de debater temas fundamentais, acaba permitindo a judicialização da questão. Aquilo que deveria ser discutido no Congresso, é decidido e resolvido pelo Supremo. Isso se deve à inércia do Poder Legislativo. Pense nas uniões homoafetivas. Milhões de brasileiros do mesmo sexo conviviam em união estável. O problema é que essas famílias não eram reconhecidas pelo Direito. O tema não avançava no Congresso. Com o falecimento de um dos conviventes, o sobrevivente muitas vezes não tinha como reivindicar seus direitos sucessórios. Trocando em miúdos: o patrimônio conquistado pelo casal podia não ficar com o companheiro vivo.
Diante dessa gritante injustiça e da omissão do Congresso, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4.277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 132, dois tipos de ações constitucionais, em boa hora o Supremo reconheceu a existência das chamadas uniões estáveis homoafetivas, concedendo o direito de conviventes do mesmo sexo ao regime jurídico da união estável. Há dez anos, ao decidir o tema, o STF protegeu a igualdade dos cidadãos brasileiros, independentemente da opção sexual, conforme determina o art. 5º da Constituição.
Por que estou lembrando desse caso? Para demonstrar a importância da Corte na proteção dos direitos individuais. O art. 102 da Constituição afirma que cabe ao Supremo a guarda da Constituição. Ao exercer essa função, o STF controla a constitucionalidade da atuação dos outros poderes. Leis e decretos inconstitucionais são revogados. Isso tem importância decisiva nas nossas vidas. O problema é que, algumas vezes, o STF ocupa o lugar destinado aos outros poderes.
Para exemplificar, por bem-intencionada que esteja a Corte, não lhe cabe criar leis criminais. Foi exatamente o que fez o STF em 2019, ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n. 26 e o Mandado de Injunção n. 4.733. O Supremo, por maioria, reconheceu que o Congresso demorou a se pronunciar sobre a matéria, decidindo que, até a edição de lei específica, condutas homofóbicas e transfóbicas serão penalizadas de acordo com a Lei do Racismo.
Não há dúvida que a homofobia e a transfobia devem ser combatidas, mas é igualmente indiscutível que não cabe ao STF criar regras criminais. Nesse ponto, prevalece o princípio da legalidade estrita, previsto no art. 5º, inc. XXXIX, da Constituição: “não há crime sem lei anterior que o defina”. O Supremo, ao decidir o tema, adotou posição ativista, ocupando, indevidamente, o espaço de atuação do Legislativo.
Ainda mais grave foi a atuação da Suprema Corte no “inquérito das fake news”. Essa investigação foi aberta sem pedido da Procuradoria-Geral da República, com base em um artigo do regimento interno do STF que prevê a possibilidade de que a Corte investigue crimes ocorridos nas dependências do tribunal. Ao abrir o inquérito, censurando matérias jornalísticas, o Supremo a um só tempo (a) desprestigiou a atuação do Ministério Público, a quem caberia instaurar a investigação, (b) baseou-se em artigo específico, que não se refere, de forma alguma, a mentiras propagadas na internet e (c) coibiu a liberdade de expressão, direito fundamental consagrado no art. 5º, inc. IV, da Constituição.
Pronunciando-se sobre o assunto, o ministro Dias Toffoli afirmou que o Supremo seria o “editor da sociedade”. Caberia perguntar: em qual artigo a Constituição diz isso? Recentemente, o mesmo ministro afirmou que caberia ao Supremo o papel de “Poder Moderador”. Por um lado, entende-se o que Toffoli quis dizer. Ao atuar na defesa da Constituição, o Supremo impede excessos do Legislativo e do Executivo.
A expressão, contudo, é extremamente infeliz quando se recorda que o Poder Moderador representava, na Constituição de 1824, o arbítrio do Imperador. Pelo seu exercício, o monarca podia interferir nos outros poderes, o que aconteceu diversas vezes.
Equiparar o Supremo, da Constituição de 1988, com o Poder Moderador, da Constituição de 1824, significa não compreender os limites da atuação da Corte. Não queremos um novo Poder Moderador, mas apenas um STF que proteja os direitos fundamentais e atue nos limites determinados pela Constituição.
(*) Ricardo Alexandre da Silva é advogado, professor e presidente do IFL – Curitiba.
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